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Há uma certa resistência, por parte de algumas pessoas, em oferecer à criança leituras como O Capim Encantado* – história em que a menina (protagonista) é enterrada viva e ressuscita por milagre de Nossa Senhora. A relutância em incluir esse conto no repertório infantil fica por conta da dramaticidade, da crueldade da madrasta em enterrar a menina viva. Devemos enfatizar que é justamente o caráter dramático dessa história que lhe concede um valor especial. Quanto maior o sofrimento do herói ou heroína, maior seu triunfo ao saborear (junto ao leitor) o final feliz. A glória do herói vitorioso, fechando a história com “chave de ouro”, é tudo o que a criança necessita ouvir, encorajando-a a enfrentar os desafios do mundo real, segundo psicólogos, psicanalistas, pedagogos e outros estudiosos que voltam seu olhar para a criança.

O medo de oferecer “histórias de medo” para as crianças é, certamente, infundado, uma vez que os personagens assustadores, que permeiam contos e cantos do repertório folclórico universal, cumprem função das mais importantes dentro do processo educacional, em particular, no desenvolvimento emocional e afetivo da criança.

O filósofo e pedagogo francês (do sec. XX) Marc Soriano denominou de pedagogia do medo a função didática de proteger as crianças dos perigos do mundo, sinalizando, através da rica coletânea que constitui o legado da tradição popular, a existência de tais perigos, em que o mal é corporificado e assume a forma de bruxas, monstros e ogros.

Esse rico acervo folclórico, ao mesmo tempo em que adverte as crianças quanto aos males mundanos, cumpre a função de envolvê-las numa experiência que proporciona prazer, aguça o imaginário e contribui para o fortalecimento da segurança emocional, sobretudo se as “histórias de medo” são partilhadas com alguém do convívio e da confiança da criança. Daí a importância dessa prática no ambiente familiar, em que os laços afetivos estão melhor consolidados, oportunizando aos pequenos uma experiência de prazer incalculável, uma vez que desfrutada com seus entes queridos (suas figuras de apego).

Ao embalar os pequeninos com canções que evocam Tutus, Bois da cara preta e Papões, as crianças vivenciam uma experiência com valor estético e função de advertência, envolta num manto de ternura tecido pela singeleza da melodia e pelo aconchego do calor humano.

Sublinhando a importância dessas experiências no ambiente familiar, não queremos, de modo algum, desmerecer (ou muito menos excluir) a participação da escola nessa importante tarefa que aglutina valores estéticos, emocionais e educativos.

A escola oferece, em contrapartida, a experiência única de desfrutar narrativas e canções na companhia de outras crianças, favorecendo a participação coletiva, em que há ocorrência de intervenções e interação entre os pequenos.

O psicanalista austríaco Bruno Bettelheim aponta os contos de fadas como gênero que oferece à criança meios para lidar com seus conflitos interiores, preenchendo vazios, apontando soluções, promovendo a catarse de seus impulsos agressivos e incutindo otimismo, o que faz desses contos um verdadeiro exercício emocional.

Segundo Bettelheim, “os contos de fadas são ímpares, não só como forma literária, mas como obras de arte integralmente compreensíveis para a criança, como nenhuma outra forma de arte é. Como sucede com toda grande arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa, e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida. A criança extrairá significados diferentes do mesmo conto de fadas dependendo de seus interesses e necessidades do momento. Tendo oportunidade, voltará ao mesmo conto quando estiver pronta a ampliar os velhos significados ou substituí-los por novos”. (BETTELHEIM, 1980. P. 20 e 21).

A riqueza dessas narrativas provém do fato de que, sendo a infância um período propício à construção de pontes entre a experiência interna e o mundo exterior, isto é, a realidade a sua volta, as narrativas tradicionais apresentam uma fabulação (sequência dos fatos da história) absolutamente coerente e compatível com o pensamento da criança, ajustável às diversas etapas de seu desenvolvimento. São narrativas irreais de conteúdo profundamente verdadeiro e que, por isso, estão em perfeita harmonia com a forma maniqueísta com que a criança percebe e ordena o mundo.

Situações ameaçadoras e aterrorizantes, presentes em contos e canções, permitem às crianças elaborar seus temores e ansiedades, corporificando o medo em forma de monstro, que, uma vez vencido, aponta soluções encorajadoras e reconfortantes, incutindo nos pequenos otimismo e entusiasmo. Bettelheim afirma que “contos de fadas dão forma e corpo a estas ansiedades e mostram também os meios de vencer estes monstros. Se nosso medo de ser devorado toma a forma tangível de uma bruxa, podemos nos livrar dele, queimando a bruxa no fogão” (BETTELHEIM, 1980. p. 151).

Também o folclorista francês Paul Saintyves, em estudo publicado em 1923, reconheceu nos contos de fadas motivos rituais que encontram total correspondência em rituais de iniciação de sociedades primitivas.

O etnólogo soviético Vladimir Propp retomou e desenvolveu, de forma minuciosa, a concepção ritualista apontada por Saintyves, confrontando um corpus de cem narrativas da tradição russa com elementos de rituais das sociedades primitivas. Propp, ao analisar as narrativas tradicionais, identifica um acentuado paralelismo entre a morfologia dos referidos contos e a prática ritualista das sociedades primitivas.

Segundo Propp, o menino pré-histórico (pertencente a grupos sociais primitivos) faz sua iniciação por meio de rituais, em que prova ser capaz de feitos gloriosos, conquistando o direito de constituir uma família, casando-se e procriando. Já o menino histórico (do mundo moderno) faz sua iniciação no mundo através dos contos maravilhosos, exercitando sua coragem, ao lidar com feras, monstros e bruxas dentro do espaço ficcional, o que contribui para a superação dos medos próprios da infância.

Os motivos recorrentes em ritos, mitos e contos dão sustentação a vida humana. São temas que focam sentimentos primários, como o amor, a raiva, a tristeza, sensação de abandono, experimentados pelo homem de qualquer tempo e espaço, o que garante sua universalidade. Exploram profundos problemas interiores, vividos por civilizações heterogêneas em diferentes regiões geográficas.

O medonho, o tenebroso, presente em canções e narrativas, alimentam o espírito, exercitando a emoção dos pequeninos, do mesmo modo que se exercita o corpo através de movimentos como engatinhar, caminhar, correr etc. A linguagem simbólica dos contos promove a catarse e oportuniza um ensaio geral da vida, o que faz do repertório tenebroso um discurso autorizado.

Elvira Drummond
(Profa. da Universidade Federal do Ceará, Licenciada em Artes, Bacharel em piano e Mestre em Literatura).

* O Capim Encantado – narrativa folclórica, de origem portuguesa, bastante difundida na região Nordeste do Brasil. Circula em várias localidades com os mais diversos títulos, tais como: Capineiro de Meu Pai, A Menina Enterrada Viva, A Madrasta, Os figos da figueira, entre outros. Um caso raro de mito cristão, em que a presença da fada-madrinha (típica do mito pagão) é substituída por Nossa Senhora e, no lugar da mágica, vemos acontecer o milagre.

Consulta Bibliográfica
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos Contos de Fadas 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d].
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Lisboa: Veja, 1992.
SAINTYVES, Paul. Les Contes de Perrault – ET lês récits paralléles. Paris: Librarie Critique, 1923.
SORIANO, Marc. Les Contes de Perrault. Paris: Gallimand, 1968.