elviradrummond_name Musicalização Educação Musical Literatura Infantil Práticas Instrumentais Artigos Home Saiba como comprar nossos livros Autora Fanpage Elvira Drummond Canal YouTube Elvira Drummond Descobrindo sons | A volta da Música às Escolas | Palavra também é brinquedo | O livro que faz ser livre | O encanto do conto cantado | O medo do medo

A boa história é aquela que é significativa para a criança. A que lhe prende a atenção. A que permite que cada um, do seu jeito, vire personagem e saia, imaginação afora, vencendo gigantes, sofrendo com os maus tratos da madrasta, dançando no baile com o príncipe ou até fazendo molecagens com o saci.

Há histórias que provocam riso; outras fazem chorar; há, ainda, as que metem medo. Todas elas exercitam as emoções dos pequeninos e cumprem a nobre função de apresentar o mundo para eles. As histórias são “de mentirinha”, mas as emoções são verdadeiras e intensas.

O mundo ficcional é um ótimo ensaio para a vida no mundo real. Apontamos, no entanto, uma grande vantagem da vivência ficcional sobre as experiências da realidade: na ficção, as crianças estão protegidas pelo que os psicólogos denominam de “requadre lúdico”. Elas vivenciam, por empréstimo, as experiências dos personagens, mas sabem, intuitivamente, que poderão desprender-se de cada situação a qualquer momento.

No exercício do magistério, lecionando a disciplina Literatura Infantil, na Universidade Federal do Ceará, tive uma aluna, mãe de uma garotinha de três anos, bastante empenhada em aplicar as considerações feitas em sala de aula, sobre os inúmeros benefícios de se contar histórias para as crianças – de preferência, estabelecendo um horário a ser cumprido diariamente.

Em aulas subsequentes, a aluna relatou, com grande entusiasmo, o êxito de suas sessões de histórias junto à filhinha, destacando a predileção da garota pela “história do lobo mau” (título dado pela menina ao conto Chapeuzinho Vermelho).

Dias depois, a mesma aluna partilhou conosco sua aflição, informando que a garotinha, inesperadamente, passou a ter medo do lobo, chegando a chorar, pedindo que a mãe guardasse o livro do lobo e contasse outra história.

A aversão repentina causou estranheza a todos (a mim, inclusive). Sugeri que não insistisse na história do lobo e procurasse atendê-la na sua própria escolha de repertório.

Alguns dias se passaram e fomos informados de que a babá da garotinha estava namorando um moço, que vinha encontrá-la todos os dias no parque do prédio. A babá costumava oferecer a sopa para a menina no horário próximo a chegada do rapaz. Com pressa de descer para vê-lo, dizia: “– Come depressa, senão eu chamo o lobo pra te pegar!”

Estava explicado: o lobo saiu do “requadre lúdico”. Não era mais o lobo da história. Virou personagem real e, pior ainda, parceiro da babá, visto que ela poderia chamá-lo a qualquer momento. O medo real apavora, o medo ficcional exercita. O mesmo acontece com histórias que fazem chorar. O choro ocasionado por piedade do patinho feio ou da formiguinha que prendeu o pé na neve é um bonito exercício de compaixão. Nada mais humano do que sofrer com o outro, fraternizar-se na dor. Assim, aprendemos a bondade, o valor da partilha, da solidariedade. Quem disse que histórias só servem para fazer rir?
Há, ainda, histórias que lidam com o gracejo, a pilhéria, provocando o riso, à descontração, como na história O macaco e a velha – conto que circula como folclore universal, recontado por Sílvio Romero, Câmara Cascudo, Ruth Rocha, Ricardo Azevêdo, dentre outros.

Nessa história, o macaco, depois de flagrado por roubar as bananas da velha, é cozido e comido por ela, provocando uma grande dor de barriga. Ao som de um estouro, sai o macaco, cantando, de forma irreverente: – “Eu vi o 'fio-fó ' da velha! Eu vi o 'fio-fó' da velha!”...

A troça, a pilhéria, mencionando o “fio-fó” da velha, é aceita pela criança com bom humor e naturalidade, porque oportunizamos citar o corpo de forma espontânea, dentro de um contexto que transforma o pudor em discurso autorizado.
Esses livros ensinam a ser livres, libertando do medo de chorar, do falso pudor e do medo de ter medo. Tais medos habitam, por vezes, de forma preconceituosa, na mente dos adultos. Deixemos que a literatura faça a sua parte, formando crianças saudáveis e leitores libertos de idéias preconceituosas.

No bojo da boa literatura infantil, destacamos as narrativas folclóricas (categoria em que se incluem as histórias aqui citadas!). O repertório folclórico passou pela peneira estética do tempo, atravessando séculos. Já provou, portanto, que não tem prazo de validade. Ganhou o selo da eternidade.

Elvira Drummond
(Profa. da Universidade Federal do Ceará, Licenciada em Artes, Bacharel em piano e Mestre em Literatura).